A conclusão a tirar é que «mais nem sempre é melhor»
Já quanto aos formatos, e para música comercial afectada pelas loudness wars, como referi acima, o vinilo é quase sempre a melhor opção e não pelos eternas e inúteis discussões «analógico vs digital», mas porque o vinilo tem quase sempre boas masterizações - e até porque a discussão «analógico vs digital» nestes casos é ainda mais inútil que o habitual, dado que os discos de vinilo são quase sempre feitos a partir do digital. O SACD, formato também dado a alguns esoterismos, é outro excelente exemplo - não é que o DSD soe melhor que o PCM (embora aqui depende mais dos DACs, há alguns casos esdrúxulos, como a DAC200 da T+A, em que a performance DSD é muito superior à PCM), mas os SACD simplesmente costumam ter melhores masterizações que as outras versões.
Para os que tenham alguma inclinação mais técnica, é possível ripar a imagem dos SACD usando uma Playstation 3 e o Google, e, através de um software como o EZ CD Audio Converter, converter essa imagem para FLAC (geralmente escolho 24/88.2, evitando assim erros de arredondamento) e desfrutar das excelentes masterizações deste formato sem necessidade de equipamento próprio para a sua reprodução (e podendo aplicar DSP). E, como também já referi em cima, para a música gravado e disponibilizada nos últimos 15 anos em alta resolução nativa, é mesmo essa a versão a ouvir e desfrutar.
Discogs
E, nas imortais palavras de Ricardo Araújo Pereira, vamos a (mais) exemplos concretos?
1) Os discos dos Metallica Kill’em All e Ride the Lightning têm um Dynamic Range muito mais alto na sua segunda edição em CD (masterizada por Bob Ludwig) do que na sua versão original, o que mostra que a regra “a primeira edição é a melhor” nem sempre está certa.
2) As versão de jazz de discos da Blue Note de Ron McMaster, transferências directas das fitas originais para CD, feitas ainda nos anos 80, com as fitas em boas condições, podem ser compradas baratas e tendem a soar muito fiéis ao original, com todas as qualidades e defeitos que estes discos têm - dizem sempre na contracapa Digital Transfer by Ron McMaster. Em contraste, as edições Rudy Van Gelder, remasterizações feitas pelo próprio no início dos anos 2000, e ao contrário do que seria expectável, são quase sempre de evitar - muito comprimidas e «inchadas”, com excesso de graves a agudos. Outras boas edições em CD são as remasterizações em formato digital da Riverside nos Fantasy Studios em Berkeley, feitas nos anos 80 e 90 por Joe Tarantino, Phil de Lancie ou Kirk Felton, apelidadas de OJC (Original Classics) - como exemplo, a versão de “Red Garland’s Piano” em CD da OJC tem um Dynamic Range de 15 comparado com 11 da versão “alta resolução”.
3) O clássico Brothers in Arms, dos Dire Straits, apesar de ter um Dynamic Range muito bom no CD original, soa substancialmente melhor na remasterização da Mobile Fidelity, que também conta com um bom Dynamic Range - o que mostra que é mesmo preciso ver e ouvir caso a caso e que um bom Dynamic Range, por si só, não significa nada.
3) O também clássico Kind of Blue, do trompetista Miles Davis, sobejamente conhecido de todos, é curiosamente (mais) uma excepção à regra - apesar das primeiras edições em CD japonesas soarem muito autênticas, é apenas a partir da edição Master Sound de 1992 (link em baixo) que Mark Wilder, nos estúdios da Sony, corrige alguns problemas com a fita original (semi-tonada), acrescentando também alguns (bem necessários) graves e uma melhor imagem estéreo e creio que todas as edições posteriores a 1992 usam estas fitas como base (link em baixo para artigo da Stereophile), se bem que a remistura de 1997, também de Mark Wilder, é considerada melhor que a da edição Mastersound (e as edições da Columbia e da Mobile Fidelity em SACD são também muito bem cotadas, sendo a da Columbia a minha preferida de todas). Os problemas de distorção dos microfones, particularmente em All Blues, são ainda infelizmente insolúveis com a tecnologia corrente…
Discogs -Miles-Davis-Kind-Of-Blue
4) A edição da Analogue Productions do famoso Getz Gilberto é também superior à do CD original, sendo mais uma excepção à regra.
Ficam ainda duas pequenas notas sobre as versões em CD dos anos 80 e do princípio dos anos 90 - se estes CDs contam, em geral, com boas masterizações pré loudness wars e beneficiam da transferência de fitas ainda bem preservadas, alguns contêm um processo chamado pre-emphasis na sua informação, que a maioria dos leitores de CDs estão preparados para resolver (embora já tenha lido que alguns modelos mais recentes já não revertem este processo) mas os servidores com os FLACs dos mesmos CDs não estão (com excepção de alguns softwares como o Foobar, com o uso de um plugin, ou o iTunes). Este processo, criado para contornar algumas das limitações dos primeiros DACs, acentua de forma muito significativa os agudos e os CDs podem soar particularmente agressivos se ele não for contornado - para quem tenha um CD presente na lista em baixo e disponha de igualização paramétrica digital no seu sistema, este excesso de agudos pode ser anulado com os parâmetros em baixo, que trazem (finalmente) à tona a excelente qualidade de muitas destas primeiras edições em CD.
Frequência = 5252 Hz
Ganho = -10 dB
Q = 0.5
A segunda nota é sobre as primeiras edições japonesas, sobre as quais recaem por vezes alguns mitos de superior qualidade sonora - e, em casos que já pude comparar primeiras versões japonesas com versões de outros países, notei uma superior qualidade sonora em alguns desses casos, mas não em todos. Um bom exemplo é a versão 35DP 4 do disco Wish You Were Here, dos britânicos Pink Floyd, que soa magnífica e superior a outras primeiras versões que já ouvi - a melhor explicação que já encontrei até hoje é que, nesta época, os japoneses tinham melhores conversores ADC (analógico para digital) que outros países e que isso explica o melhor som dos CDs japoneses. Não faço a mínima ideia se tal será verdade, mas não parece ser uma má explicação… E atenção, muitas dessas primeiras edições japonesas padecem do problema de pre-emphasis, explicado em cima (a de Wish You Were Here é uma delas). Outros bons exemplos de excelentes primeiras edições japonesas são os discos dos Nirvana os dos Pearl Jam (os seis primeiros apenas, os subsequentes já padecem de excessiva compressão) ou ainda os dos The Doors pela DCC, assim como alguns dos primeiros discos dos Metallica já na segunda edição remasterizada por Bob Ludwig, todos eles livres de pre-emphasis, felizmente.
Tenho para mim que os dois principais «erros» que os audiófilos cometem nos seus sistemas passam por não cuidarem dos seus quartos e, desde o advento do streaming, não se preocuparem com a qualidade do que colocam a tocar - é mais simples usar um serviço, escolher a versão de «alta resolução», assumir que é a melhor e carregar em Play. Como vimos acima, muitas vezes a versão em alta resolução é «pior» masterizada (ou seja, muito mais comprimida) que as versões originais de CD ou que as versões de SACD ou vinilo, e os ganhos de uma boa masterização serão quiçá tão grandes ou maiores que outros investimentos bem mais dispendiosos num sistema de alta-fidelidade - afinal de contas, ninguém compra um Porsche para lhe colocar Gasolina 95… Espero que as ferramentas aqui apresentadas (plugin DR Meter para o Foobar, base de dados DR Meter, Discogs, LAC e fóruns Steve Hoffman) permitem aos audiófilos fazerem escolhas mais conscientes - não será tão prático como usar apenas streaming, mas ir comprando bons CDs (que hoje em dia, em segunda mão, são até muito acessíveis), ainda que ocasionalmente, e manter um leitor de CDs ou um servidor com o FLACs «ripados», pode pagar significativos dividendos sonoros. E ferramentas como o Roon ou a aplicação de vários streamers permitem já construir bibliotecas com ficheiros provenientes de streaming e ficheiros locais, conseguindo-se assim o melhor de dois mundos. Boas audições!
PS 1 - Fica aqui um link para uma lista de vídeos do YouTube de um canal sobre o analógico mas que também faz vídeos sobre CDs, com material muito interessante.
PS 2 - Já depois deste texto estar finalizado, encontrei um exemplo ainda mais gritante dos problemas da (re)masterização moderna - o clássico Fear of the Dark, dos Iron Maiden, tem um Dynamic Range de 15 na sua edição original e um valor de 6 na edição remasterizada em alta-resolução… escusado será dizer que se aconselha muito mais a escuta do CD!.
PS 3 - Outro plugin muito interessante do Foobar é o ReplayGain, que vem até de origem actualmente, e que permite medir os picos de volume e o ganho digital. É importante aqui esclarecer que volume e compressão são coisas muito diferentes - é possível ter um disco muito bem gravado e muito bem masterizado, com pouca (mas alguma) compressão, e colocar o volume desse disco demasiado alto e próximo (ou acima) de 0 dBFS. E vice-versa, claro - embora muitas vezes, de facto, o volume demasiado alto ande de mãos dadas com o excesso de compressão. E, se quando um disco tem demasiada compressão, não há nada que se possa fazer posteriormente, quando está demasiado alto é possível atenuar o volume (no domínio digital), resolvendo assim o problema e evitando intersample overs, fenómeno sobre o qual já escrevi abundantemente. Um bom exemplo é o disco Yes! de 2014, do pianista Aaron Goldberg - com um Dynamic Range de 14, tem muito pouca compressão, mas infelizmente tem um pico de +1,05 dB acima da escola digital, o que fará com que faça «clipar» a maioria dos DACs presentes no mercado… Recomenda-se então aqui o uso de atenuação digital. É portanto, saudável distinguir entre volume e compressão e, claro, apenas por um disco ter muita gama dinâmica e não estar acima de 0dBFS, não significa por si só que vá soar bem - embora seja logo um bom ponto de partida.
Aliás, muitos discos nos anos 80 e 90 seguem o exemplo atrás referido: apesar de terem pouco compressão e, consequentemente, boa gama dinâmicas, estão também eles muito altos (em volume), até porque naquela altura os DACs R2R eram muito comuns e, ao contrário dos mais comuns Delta-Sigma usados hoje em dia, estes DACs não têm problemas com intersample overs, porque não usam filtro de oversampling - e portanto os engenheiros de som não viam problema em ultrapassar 0 dBFS. Recomenda-se então que se usem ambas as ferramentas, DR Meter e Peak, e que se escolham discos com boa gama dinâmica e, caso ultrapassem 0 dBFS, se atenue um pouco o volume no domínio digital - com o uso destas duas ferramentas o tal som “digital” de que tantos falam, em sentido pejorativo, terá muito mais dificuldade em aparecer. Boas audições!