A música deve ser ouvida, não pensada.
É inquestionável que um dos grandes nomes do mundo do high-end, diria mesmo «O NOME» é Ricardo Franassovici. Cidadão do mundo, homem que nas suas origens tem cruzamentos sanguíneos que resultam de uma mãe francesa e de um pai romeno, e que viveu numa grande variedade de países, Ricardo é como que um dos primeiros resultados daquilo a que hoje em dia se convencionou chamar cidadão global. Uma boa parte da sua vida, desde a infância até início da idade madura, foi passada em Portugal, graças ao facto de a família Franassovici ter sido uma das privilegiadas, num total de quatro, a poder abandonar a Roménia de Ceausescu e vir viver para Portugal, mais exactamente para a zona de Cascais.
Aí Ricardo viveu, nas suas próprias palavras, alguns dos momentos mais felizes da sua vida, e isso faz com que, mesmo hoje em dia, exista dentro dele uma ligação muito forte ao nosso país, ligação essa que certamente um destes dias fará com que ele se venha instalar em definitivo entre nós. A vida de Ricardo em Portugal durou até que ele tivesse perto dos 25 anos de idade, tendo-se ele dedicado a diversas actividades, nomeadamente na área da sonorização e produção musical, actividade em que conviveu com alguns dos grandes nomes do rock da época (inícios dos anos 70) e incluindo uma primeira experiência de importação, com a criação de uma empresa que, embora em outras mãos, ainda há pouco tempo existia no início da Rua Passos Manuel, em Lisboa. A grande turbulência que se seguiu ao 25 de Abril conduziu a que a família se deslocasse toda para o Brasil, onde esteve por um período curto, após o que regressou a França.
Ricardo nos (quase) primeiros tempos da Absolute Sounds.
Pouco tempo passou até que Ricardo se «aventurasse» a ir para Inglaterra, um país desde sempre aberto ao mundo, local onde instalou a sua Absolute Sounds, na altura com pouco mais que 800 libras no bolso e um Renault 5 com pavimento em madeira! Foram tempos difíceis, na Inglaterra viviam-se os dias «gloriosos» de Linn+Naim e não era nada fácil a alguém, para mais vindo de fora, criar toda uma nova filosofia assente em marcas sem dúvida de grande prestígio e qualidade, mas que tinha que remar contra a maré vigente. E anos e anos de dedicação fizeram como que a Absolute Sounds prosperasse e Ricardo assumisse a pouco e pouco a posição de figura dominante no mundo do áudio de qualidade, permanentemente abordado por fabricantes que pretendem que ele distribua os seus produtos.
Sempre que pode, o Ricardo não perde uma oportunidade de vir «matar saudades» e foi isso mesmo que fez quando do evento ImacShow que comemorou recentemente os 39 anos de existência da Imacustica e trouxe até nós um número bem interessante de grandes figuras do mundo do High-End. E claro que foi mais uma bela oportunidade para falarmos sobre muitas áreas de interesse comum de uma maneira bem descomprometida e de modo nenhum numa parada de pergunta e resposta. As palavras são como as cerejas e a nossa conversa espraiou-se de maneira prazerosa sobre tantos temas que será difícil fazer aqui uma transcrição completa do que dissemos. Mas vou-me recorrer não só da memória como da transcrição, devidamente adaptada, de partes de um texto que fez parte do Suplemento High-End, incluído na edição especial n.º 200 da Audio e Cinema em Casa para deixar aqui uma súmula do que de mais importante falámos.
Desde o aparecimento do primeiro fonógrafo que o homem procura atingir um objectivo até agora irrealizável na sua forma absoluta: conseguir ter em casa uma reprodução musical que o faça sentir como se estivesse no local onde a obra original foi interpretada. Claro que este desiderato envolve, pelo menos, três vertentes bem fortes: o aspecto técnico, que tem a ver com as capacidades de gravação num determinado suporte dos sons originalmente reproduzidos; a envolvente emocional, essa bem mais complexa, e que abrange áreas do conhecimento humano ainda não completamente exploradas, tais como a capacidade que o nosso cérebro tem de nos fazer sentir determinadas emoções perante determinadas condições exteriores; e, por fim, embora nunca menos importante, o facto de a esmagadora maioria de nós, pobres mortais, não termos uma sala que minimamente se aproxime das que são utilizadas para espectáculos musicais.
Ao longo do tempo vários destes aspectos foram sendo melhorados, tendo aquilo a que nós chamamos alta-fidelidade começado como um conceito no final dos anos cinquenta… inícios dos anos sessenta. Foi só na segunda metade da década de setenta do século passado que surgiu um conceito novo, inicialmente olhado com estranheza. Mas alguns visionários não se impressionaram com essa sensação de estranheza e investiram tudo o que tinham em termos pessoais e financeiros para construir e / ou comercializar equipamentos que permitissem atingir esse Nirvana sónico.
A Dan D’Agostino criou uma reputação inquestionável.
Foi o conceito de high-end que permitiu despertar os espíritos de muitos amantes da música para o facto de que era possível atingir em casa um escalão de reprodução musical que muitos deles não julgariam realizável. No entanto, ao longo dos mais de cinquenta anos de vida do high-end, alguns associaram-no de maneira exclusiva à fabricação ou comercialização de equipamentos de preços estratosféricos, sem qualquer outro tipo de objectivo que não o preço em si. Ora esta é uma interpretação abusiva e totalmente errada do que é na realidade o high-end, diria mesmo uma deturpação. Isto porque estão em jogo tantas coisas, muitas delas jogando com as nossas capacidades emocionais, que o facto de, para se atingir níveis absolutamente fabulosos de reprodução, ser necessário gastar realmente somas elevadas de dinheiro na aquisição de determinados equipamentos foi por alguns considerado como um fim em si, quando não deixam de ser um meio para se atingir um determinado fim. Mas não se trata do único meio, nem sequer existe a garantia de que o dispêndio de uma soma de dinheiro elevada nos permita atingir um determinado grau de satisfação e envolvimento. O fim último é a obtenção de níveis de qualidade de reprodução musical que nos transportem literalmente ao local da interpretação, mas isso não acontece milagrosamente quando se liga este equipamento àquele outro, nem equivale automaticamente à necessidade de aquisição deste ou daquele equipamento deste ou daquele preço. Há quase como que uma ciência mágica que reúne em si os conhecimentos da «experiência adquirida» que só alguns dominam e que permite que das suas mãos saiam resultados notáveis, que nem sempre dependem do preço absoluto dos equipamentos em jogo.
Tal como eu, Ricardo não concorda que o high-end seja um nicho de elite, povoado por pessoas que apenas procuram os equipamentos mais caros, porque noutras áreas gasta-se bem mais dinheiro do que no áudio e com uma capacidade de fruição bem menos perene. Uma boa garrafa de vinho, uma boa caixa de charutos, tudo isto pode ser extremamente caro, a sensação resultante pode ser altamente gratificante, mas nada se compara ao resultado da audição de uma boa peça musical em toda a sua plenitude. Além disso, um charuto ou uma garrafa de vinho usam-se apenas nessa vez e a experiência musical pode repetir-se um número quase infindável de vezes. Claro que para construir um equipamento de alto calibre, quase que em si um instrumento de reprodução musical, tem que se investir muito em termos de tecnologia e desenvolvimento e na qualidade final dos componentes necessários para atingir os resultados desejados É óbvio que isso significa que um equipamento que se destina a uma reprodução musical tão refinada tem que ser caro, até porque ele tem um toque de individualismo que o distingue dos produtos de massa. O mesmo acontece, aliás, com um grande automóvel que, para nos transmitir o tão almejado prazer de condução, teve que ter por detrás de si toda uma grande série de engenheiros de projecto e pilotos de teste, recorrendo-se em consequência aos melhores materiais para a sua construção, tais como carbono, titânio, electrónica sofisticada de controlo de estabilidade e travagem e assim por diante. Não admira que o preço final reflicta o investimento colocado em cada uma destas áreas.
Ricardo fundou assim como que uma boutique de áudio, dedicada a trazer até aos consumidores interessados os produtos que traduzem melhor essa expressão musical, e foi pelo mundo inteiro procurar os equipamentos capazes de o fazerem e trazerem até nós toda a envolvente dinâmica e envolvimento emocional presentes nos clubes, bares e concertos ao vivo dos artistas mais importantes e nos quais ele tinha estado em pessoa. Claro que isso implica encontrar fabricantes que não têm como prioridade vender grandes quantidades mas sim fabricar produtos que utilizem a tecnologia para levar ao ouvinte a mais-valia daquele algo mais, aquela sensação única de envolvimento entre quem ouve e o artista que originalmente tocou. Para além do equipamento em si, tem que haver esse algo mais, como que o toque de magia colocado pelo artista / engenheiro que o projectou, aquela capacidade que faz com que seja quase possível ter na nossa frente o intérprete a tocar e ver as suas mãos a deslocarem-se sobre as teclas definindo as diversas frases musicais. É evidente que isto implica alguma exclusividade, quanto mais não seja baseada nas pequenas quantidades de fabricação, o que necessariamente implica um preço final mais elevado para estes produtos, mas não necessariamente preços totalmente fora do alcance da maioria.
Ricardo defende que um bom servidor de áudio como o Antipodes Oladra é uma solução muitas vezes melhor que um NAS.
A ilha, ainda mais isolada que hoje, que era a Inglaterra no final dos anos 70, teve alguma dificuldade em compreender este conceito e, nos primeiros tempos, juntamente com o seu indefectível funcionário Pedro, de origem italiana, Ricardo teve muito de missionário, ao percorrer o pais de lés a lés, de show para show, demonstrando as qualidades dos seus equipamentos, correspondendo aos anseios daqueles que num certo momento tinham determinado que, em face de a música ser uma arte muito expressiva, que tem tanto de emoção como de técnica, procuravam os equipamentos que fossem capazes de trazer até eles tudo aquilo que vivemos quando temos na nossa frente a interpretação ao vivo de uma peça musical interpretada por um grande músico em relação ao qual, como é evidente, nunca teremos dinheiro para pagar uma hipotética deslocação a sua casa. Mais ainda, existe no mundo uma herança musical tão forte, formada por um leque quase infinito de gravações dos melhores músicos, que faz todo o sentido ter um grande sistema de áudio para podermos usufruir dessa herança de valor inestimável.