O realizador Jonh Hillcoat traz-nos aqui um remake do filme La Strada de Frederico Fellini (1954), mas que não deixa de ser uma referência obrigatória para qualquer amante de cinema e literatura
O título do mais recente do realizador Jonh Hillcoat não é um remake do filme La Strada de Frederico Fellini (1954), porém não deixa de ser uma referência obrigatória para qualquer amante de cinema e literatura. A Estrada é a adaptação do livro homónimo de Cormac McCarthy, vencedor do Prémio Pulitzer de 2007. O filme tem ainda o mérito de reunir três monstros sagrados: Nick Cave e Warren Ellis (autores da magnífica banda sonora) e Viggo Mortensen, cuja notável interpretação não fica aquém dos papéis que o celebrizaram no trabalho de Cronenberg. Esta introdução justifica por que motivo classificamos A Estrada como filme obrigatório. Jonh Hillcoat consegue recriar o universo de McCarthy de uma maneira verdadeiramente inteligente. Seria arriscado passar para o cinema de forma tão digna e realista a história de um pai (Viggo Mortensen) e um filho (Smit-McPhee) que tentam sobreviver à destruição de uma terrível catástrofe que arrasou todo o planeta. É sempre difícil honrar o tema do amor abnegado, capaz de sustentar todo o sofrimento e qualquer jornada de sobrevivência, mas o realizador torna-se ele próprio um peregrino, levando a arte pela estrada fora. Ao longo do filme sucedem-se paisagens inóspitas, integradas numa fotografia maravilhosa, assente na singularidade e realismo do movimento da câmara. Todo este realismo e sobriedade remetem-nos para os cenários de Alexander Sukurov, o cineasta russo autor de Pai e Filho (filme que integra uma das mais belas trilogias do cinema). Mais do que cinema e literatura, futurismo ou profecia, A Estrada é uma ode à vida, ao amor e à esperança. Hillcoat não se limita a homenagear o cinema, a música ou a literatura, pois muitos planos deste A Estrada são pormenores alusivos a telas de grandes mestres da pintura. O quadro criado por Hillcoat recria as sombras dos interiores de Rembrandt, a nostalgia de Turner, as tormentas de Goya, as paisagens de Cézanne, o lirismo da luz de Millet, a luminosidade barroca e o pincel melancólico de Van Gogh. Há ainda o drama das personagens, pautado por intensos diálogos e pela sobriedade das cenas de maior acção, que conferem um lugar central às personagens do pai e do filho, muito bem secundadas por Charlize Theron e Robert Duvall. Ao longo do filme nunca se chega a saber qual foi a génese da terrível catástrofe que dizimou o planeta, nunca se descobre o que há para além do mar, as personagens não têm nome, mas no final há um pai que diz ao filho: «You have my heart». A Estrada de Hillcoat é exactamente isto: uma preciosa metáfora do coração.